A santidade no cotidiano
Da planilha à oração: descobrindo a presença de Deus no trabalho cotidiano.
“Tudo aquilo em que intervimos os pobrezinhos dos homens - mesmo a santidade - é um tecido de pequenas insignificâncias que, conforme a intenção com que se fazem, podem formar uma tapeçaria esplêndida de heroísmo ou de baixeza, de virtudes ou de pecados.”
São Josemaría Escrivá, Caminho 826
Escrevo estas linhas enquanto São Josemaria sussurra na véspera de sua festa para ser publicado no seu dia, 26 de junho, a Igreja o celebra. E este ensaio nasce de uma meta-reflexão, em como busquei transformar meus estudos, escritos e trabalho sempre em oração. Que cada texto publicado ou a cada enter, seja uma genuflexão digital.
Escute o ruído seco da tecla nas madrugadas de planilha. Soa como o estalo distante de um turíbulo, não soa? Quem imaginaria que o office-boy de múltiplas telas, aquele que preenche células no Excel antes mesmo de tomar café, se tornaria como um monge mais improvável do século XXI? Joelhos sem calos, mas pulsos calejados. Chapéu romano trocado por headset. A ladainha antiga substituída pelo zumbido hipnótico dos indicadores de performance.
Pergunto: é profana esta liturgia cotidiana? Ou será justamente na planilha mais árida que Deus escondeu seu altar?
Tomás de Aquino, quando falava sobre a industriosidade, enxergou no trabalho honesto uma virtude que ordena o caos em direção ao bem1. Nada mais atual, não é mesmo? Vivemos engolidos por tabelas que devoram nossas horas, mas há um momento — ah, que momento! — quando a fórmula se alinha, o saldo fecha, a lógica triunfa. Nesse micro-êxtase, a alma percebe (ainda que em silêncio) que não foram apenas números conciliados. Foi o universo inteiro restituído à ordem, mesmo que na escala modesta de um orçamento doméstico.
Adam Smith notou algo curioso: aquele "prazer secreto de contemplar a felicidade alheia"2. O programador que otimiza um sistema, poupando dez cliques diários ao usuário, participa da mesma dança. Entrega tempo, devolve tranquilidade. Um gesto aparentemente técnico vira ato de misericórdia econômica. E quem vê o resultado, um contador finalmente respirando aliviado, experimenta a alegria que Smith descreveu. Virtude gerando prosperidade: caridade traduzida em linguagem de mercado.
Chesterton, eterno caçador de paradoxos, sussurrava que "o mundo não sofre por falta de milagres, mas de olhos que os vejam"3. O milagre hoje veste paletó corporativo: videoconferências que unem continentes em segundos, algoritmos que salvam vidas através de diagnósticos precoces, trabalhadores remotos sustentando famílias inteiras a partir de quartos modestos. Mas sem olhar místico, essas maravilhas viram apenas ruído de notificação. Faltam olhos capazes de reconhecer, sob o cinza dos cabos USB, o fio dourado da Providência.
São Josemaria trouxe uma ideia revolucionariamente antiga: a "unidade de vida". Não existe sábado deserto nem segunda-feira profana, tudo converge para o mesmo sacrifício invisível. Fazer login no sistema é atravessar o átrio do templo. Cada macro enviada ao servidor, se guiada por intenção reta, sobe como incenso. Não se trata de expulsar o mundo em nome do céu. Trata-se de consagrá-lo, tornar cada byte uma pedra viva da nova Jerusalém.
Escrivá insistia numa verdade desconcertante: "Deus nos espera todos os dias na oficina, no laboratório, no campo, na fábrica, na sala de professores." E se estendesse a frase? "Deus nos espera no home office, na videoconferência às sete da manhã, no chat corporativo que não para de piscar." O fundador da Opus Dei via santidade onde outros enxergavam apenas rotina. Não era preciso abandonar o escritório para encontrar Deus — era preciso encontrar Deus no escritório.
Esta não é uma espiritualidade de fuga, mas de mergulho. O contemplativo digital não despreza planilhas; ele as transforma em altar. Não evita deadline; transforma pressão em oferecimento. "Santificar o trabalho, santificar-se no trabalho, santificar com o trabalho" — as três dimensões clássicas da espiritualidade do Opus Dei ganham nova roupagem quando aplicadas ao universo corporativo contemporâneo.
Aquele programador que debugga código até tarde não está apenas resolvendo problemas técnicos; está praticando a virtude da perseverança que São Josemaria tanto prezava. A analista que refaz relatórios pela terceira vez não é apenas perfeccionista; está vivendo aquela "paixão pela perfeição humana" que Escrivá considerava reflexo terreno da perfeição divina. O gerente que escuta pacientemente as queixas da equipe não é apenas bom líder; está exercitando a caridade fraterna que transforma qualquer ambiente em campo de apostolado.
Escrivá falava do "sentido sobrenatural" — essa capacidade de enxergar o divino no prosaico. Aplicado ao nosso tempo: ver Providência onde outros veem algoritmo, reconhecer vocação onde outros veem apenas career path, descobrir oração onde outros encontram apenas productivity hacks.
Mas cuidado! Duas tentações rondam esta espiritualidade digital. A primeira é o gnosticismo tecnológico: imaginar que basta conectar-se à nuvem para escapar das durezas do corpo. Bobagem! "Calos no teclado" não dispensam calos no joelho. Corpo e alma rezam juntos, abdicar de um empobrece fatalmente o outro. A segunda tentação é mais sutil: o culto à produtividade sem propósito. Relatórios impecáveis podem ocultar corações vazios, como cofres esquecidos de sua razão de ser. Tomás ensina que virtude reside em ordenar meios a fins, e o fim último não são KPIs cintilantes, mas a Face que sorri por trás de cada pessoa servida.
Os céticos pedem dados? A University of Warwick descobriu em 2015 que trabalhadores felizes e reconhecidos são 12% mais produtivos. Indício empírico de que amor ao trabalho não é luxo devocional, mas engrenagem eficiente da máquina humana. A mística cotidiana antecipa nos spreadsheets resultados que os gurus de gestão só descobrem tarde demais: economia do dom mascarada de ROI.
E a oração? Talvez o rosário agora seja palmilhado entre deploys: cada push para o repositório pode socorrer um mistério; cada pausa para reunião pode converter-se em súplica pelos colegas. Não para diluir o sagrado na rotina, mas para dilatar a rotina no sagrado. Se, como escreveu Escrivá, "o mundo é pequeno quando o coração é grande", então o dashboard também cabe na nave de uma catedral.
Há uma ascética própria do conhecimento digital que Escrivá certamente reconheceria. A paciência diante da tela que trava é exercício de temperança. A generosidade em compartilhar conhecimento técnico com colegas iniciantes, prática da magnanimidade. O cuidado em não dispersar-se nas redes sociais durante o expediente, guarda dos sentidos adaptada aos tempos. "Fazer bem as coisas pequenas", dizia São Josemaria — e que coisas mais pequenas que o clique preciso, o código limpo, a planilha sem erros?
O santo de Barbastro falava de "oração aspirada" — essas jaculatórias instantâneas que sobem ao céu enquanto as mãos trabalham. No mundo digital, ela pode brotar no intervalo entre salvar e abrir arquivo novo, no segundo de carregamento da página, na pausa entre uma linha de código e outra. "Jesus, confio em Vós" pode ser murmurado enquanto aguarda o sistema processar dados. "Cor Mariae" pode acompanhar o envio do e-mail importante. São microsegundos de eternidade infiltrados na temporalidade dos bytes.
Esta espiritualidade não romantiza o trabalho — reconhece suas limitações e frustrações. Mas encontra aí, justamente, matéria-prima para santificação. A reunião que se arrasta, o sistema que falha na véspera da entrega, o colega difícil — tudo vira oportunidade de crescimento interior. Não masoquismo, mas realismo supernatural: se Deus permite esta circunstância, há graça escondida nela.
Chegamos então ao paradoxo final: um bônus salarial compra silêncio, mas só intenção reta compra paz. O profissional que fecha o notebook ao fim do dia, e o faz em estado de oferenda, pode não ser campeão de métricas, mas carrega o selo invisível da fidelidade. Existe folha de pagamento capaz de remunerar esse consolo? Nenhuma auditoria detecta os juros acumulados no banco da eternidade.
Fiquemos com um exame simples: antes de pressionar Enter hoje, 26 de junho, pergunte-se, para quem e para quê? Se a resposta incluir "para a glória de Deus e o serviço do próximo", então o teclado se converterá em altar portátil e o comando "salvar como" em ato litúrgico. Não haverá mais conflito entre joelho e teclado, porque ambos se curvarão diante do mesmo Senhor. E você descobrirá, com espanto, que cada célula preenchida era, na verdade, oração digitada em planilha de luz.
Tomás de Aquino, Summa Theologiae II-II, q. 166
Smith, Adam, The Theory of Moral Sentiments (1759)
Chesterton, G. K., Tremendous Trifles (1909)